Os personagens de Monteiro Lobato
possuem uma importância para o
imaginário infanto-juvenil e popular,
análogo à importância dos personagens
Asterix para os franceses e os personagens
de Walt Disney para os americanos.
Cláudio Cardoso de Paiva
As personagens que habitam o Sítio, os
seus moradores, têm cada qual uma função tracartográficas, extraespaciais e extratemporais,
e viver os indescritíveis mundos má-
gicos” (CARVALHO, 1989, p. 156).
A liberdade de ação da criança, mostrada
por Monteiro Lobato, desde Reinações de
Narizinho, seduziu os seus pequenos leitores
que se imaginavam soltos para viver
todas as aventuras possíveis, com o conseqüente
afloramento da curiosidade de conhecer
o mundo, em seus detalhes.
No Sítio, todas as personagens são felizes,
livres e vivem sem regras muito severas.
As crianças são orientadas apenas a seguir
os horários das refeições e de dormir. Essa
é a hora sempre muito esperada por todos,
porque nesse sítio, ninguém vai para cama
sem antes ouvir as histórias que dona Benta
conta.
Dona Benta: A Contadora de Histórias
A personagem surge, na primeira versão de
Reinações de Narizinho, com mais de setenta
anos. Na versão posterior, a partir de
1934, a “pobre velhinha” já havia sido substituída
por uma velha de mais de sessenta
anos, em virtude das ativas participações nas
aventuras propostas por seus netos.
Nas adaptações feitas para a televisão,
dona Benta foi rejuvenescida ainda mais.
Mostra uma senhora muito bem disposta e,
nesta versão apresentada pela TV Globo, a
partir de outubro de 2001, a personagem ganhou
até computador, microondas e vive às
voltas com várias campanhas sociais.
Dona Benta é a figura simpática da avó, inteligente
e livre-pensadora, dona de uma notável
bagagem de experiência, sabedoria e
compreensão; constitui-se no símbolo da razão
e do bom senso, a guiar e formar o bando travesso e ávido de curiosidade. Dona Benta
constitui o elemento neutralizador da ação
erudita do Visconde, simplificando sempre
os conhecimentos e tornando claras as idéias
complicadas do ‘sábio’ (CARVALHO, 1989,
p. 157).
Essa personagem é a que une o mundo
real com o mundo imaginário, pois possui
a grande e nobre tarefa de contar histórias
a seus netos. Esse papel de contadora de
histórias é desempenhado, com maestria, por
dona Benta, porque ele tem o seu jeito especial
de transmitir as clássicas narrativas.
Sentada em uma cadeira, dona Benta traz
sempre consigo um livro às mãos. Com isso,
revela a fonte de sua sabedoria, pois mostra
que possui conhecimento das histórias por
meio dos livros que compõem a sua biblioteca.
A fórmula que dona Benta descobriu para
contar histórias é muito simples. Com o livro
às mãos, a personagem valoriza esse meio de
comunicação e fonte de suas narrativas e ao
invés de apenas ler suas páginas, conta a história,
com suas próprias palavras, utilizando
gírias e termos que as crianças conhecem.
Consegue unir o livro, uma leitura solitária
à arte de contar histórias, uma socialização
das emoções.
Tia Nastácia e Tio Barnabé:
Representante da cultura popular, a escrava
e moradora do Sítio é a única que não
tem conhecimentos de livros, só a sabedoria
recebida através dos seus antepassados. Conhece
os remédios caseiros, os benzimentos,
as histórias de tradição oral, as lendas e os
mitos, como Saci e a Cuca, além de outros, e
nutre por eles um forte sentimento de medo.
Tia Nastácia vive se benzendo para se proteger
de todos os males e, principalmente,
quando ouve as histórias extravagantes que
as crianças contam, justamente por não conseguir
entendê-las.
Ao criar essa personagem, Lobato quis retratar
a presença das escravas, que ganhavam
alforria, mas que continuavam prestando serviços
aos antigos donos. O mesmo aconteceu
com tio Barnabé, que continuou morando
em um casebre, nos limites do sítio,
um exemplo da atitude dos senhores que não
tinham o que fazer com os antigos serviçais.
Tia Nastácia, figura folclórica de preta velha,
cuja ignorância, pura e ingênua, é vivida na
plenitude de suas superstições, herança dessa
boa raça negra, representa uma personagem
também imprescindível à obra.
O tio Barnabé com a tia Nastácia formam ambos
os canais humanos do Folclore na obra
lobatiana (CARVALHO, 1989, p. 157).
Visconde de Sabugosa
O cientificismo de Lobato
Criado a partir de uma espiga de milho, o
Visconde de Sabugosa representa, simbologicamente, o conhecimento científico, adquirido
pelo “contato” com os livros na biblioteca
do Sítio.
Essa personagem “nasceu” de uma brincadeira
de Narizinho e Pedrinho, que estavam
à procura de um pai para o Marquês de Rabicó,
o porco, para pedir a mão de Emília em
casamento a seu filho.
Essa brincadeira com espigas de milhos,
chuchus, abobrinhas era comum nas zonas
rurais e Lobato confessou ter utilizado-os
para brincar com suas irmãs. Diz o autor
que brinquedos industrializados não tinham
vida, por isso aqueles que eles mesmos criavam
podiam sofrer transformações até ir para
a lata do lixo.
O Visconde é a personagem que identifica
o autor no mundo das ciências, com explica-
ções exatas para todos os acontecimentos e,
como conseqüência de sua extrema sabedoria,
torna-se cansativo na opinião dos moradores
do Sítio.
O título de visconde parece ser, também,
uma referência ao avô de Lobato, o Visconde
de Tremembé, “figura que aparece com força
nas suas memórias de infância”, além de dualidades
de admiração e de diferenças de opiniões.
“Talvez seja a razão de Lobato matar
e ressuscitar tantas vezes o herói-sabugo?”
(PENTEADO, 1997, p. 212).
“O Visconde de Sabugosa é símbolo da
erudição alienada das realidades, ilhado em
seu mundo livresco, a consumir-se entre as
prateleiras e a poeira das estantes”, afirma
Bárbara Vasconcelos de Carvalho (1989, p.
157).
O Visconde desempenha funções importantes
em quase toda a obra. De fato, vai-se
tornando mais ‘simpático’, um ‘gigante’ em
Chave e, na última história, é vítima de umaloucura ‘heróica’, o que indica um desejo
interior de Lobato de redimi-lo. Não fosse
a posição assegurada de Emília, na obra de
Lobato, como personagem principal, o Visconde
de Sabugosa poderia ter tido suas pretensões
ao estrelato (PENTEADO, 1997, p.
213).
Na atual adaptação feita para a televisão,
o Visconde aparece com tamanho reduzido,
dando a ele um sentido mágico e sobrenatural,
valorizando o fato de ter sido anteriormente
uma simples espiga de milho.
Pedrinho: o menino Lobato
Quando criança, viveu muitas aventuras
na fazenda de seu avô. Pescar, caçar e
ouvir histórias das criadas eram suas distra-
ções. Quando imaginou o Sítio, colocou-se
como Pedrinho, revivendo as suas próprias
molecagens.
Pedrinho é o menino que mora na cidade,
filho de Antonica, neto de dona Benta. Não
vê a hora de chegarem as férias para ir para
o sítio de sua avó, brincar com Narizinho e
Emília. Participa de todas as aventuras e está
sempre pronto para caçar o Saci.
Pedrinho é a infância reencontrada, reinventada
e revivida do seu criador. É o potencial
másculo na integração do cenário humano;
encenando a sua atuação de homem,
desenvolvendo a personalidade masculina do
inconsciente jogo lúdico, pondo em evidência
as suas características: ‘Este meu neto
vai, quando crescer, virar um grande homem,
não resta dúvida’. ‘Pedrinho é um menino
que promete, confirmou tia Nastácia’. Eis os
prognósticos da avó e da preta velha, através
dos quais o próprio autor se projeta e se de-
fine (CARVALHO, 1989, p. 156). Além disso, Pedrinho é o elo que liga a
cidade ao campo, contando as novidades, inserindo
o leitor em um mundo que conhece.
A personagem Lúcia, de apelido Narizinho,
é a representação da menina, a heroína
pronta para viver inúmeras aventuras, com
graça e simplicidade, próprios da infância,
juntamente com seu primo, o Pedrinho.
Narizinho, ao ganhar vida nos livros de
Lobato, mostra a sua semelhança com Alice,
a do “País das Maravilhas”, em relação ao
seu ímpeto de criatividade nas brincadeiras,
vivendo seus contos de fadas, com grande
naturalidade:
... a primeira versão de A Menina do Narizinho
Arrebitado mostra que seu ponto de partida
foi a invenção de Lewis Carroll, quando
em 1862 escreve Alice no País das Maravilhas.
Tal qual Alice que, brincando no jardim,
está quase adormecendo quando vê passar
um coelho vestido consultando um reló-
gio, e ao persegui-lo entra em uma toca que a
leva ao ‘país das maravilhas’, também a Lú-
cia de Lobato já ia adormecendo à beira do
regato, no sítio da avó, quando sente cócegas
no nariz e ali vê um peixinho e um gafanhoto,
muito bem vestidos e conversando... e acaba
por seguir o peixinho-príncipe, entrando no
maravilhoso Reino das Águas Claras. Ambas
as personagens (a de Carroll e a de Lobato),
no final, voltam para a realidade comum, no
momento em que acordam: tudo não passara
de um sonho...(COELHO, 1995, P. 851).
O escritor, ao criar Narizinho, uma menina
diferente às de sua época, com um espírito
questionador, de imensa curiosidade
e desenvoltura em suas brincadeiras, apesar
de seguir alguns padrões estabelecidos paraa sociedade, como ser cozinheira, costureira
e andar sempre com uma boneca, brinquedo
preferido pelas crianças do sexo feminino.
Lobato, ao criar a Lúcia, a menina do narizinho
arrebitado, esperava mostrar ao mundo
uma menina moderna, sem perder os seus
princípios femininos.
Para Bárbara Vasconcelos de Carvalho
(1989, p. 157), o retrato de Narizinho seria
assim: “...eis aí Narizinho a brincar o
eterno brinquedo da mulher: companheira,
mãe, equilíbrio da natureza humana, em seu
relacionamento dentro da obra com Pedrinho
e a Boneca, perfeitamente situados pelo seu
criador, através dos quais se realiza o seu papel
simbólico”.
Emília: a fada brasileira
Se Lobato criou Narizinho à imagem de
Alice, de Lewis Carroll, Emília também já
tinha um antecessor, o famoso Pinóquio, de
Carlos Lorenzini, o Collodi. O boneco era
feito de pau e é lembrado em Reinações de
Narizinho, como o Faz-de conta, feito também
de um pedaço de pau pela tia Nastácia.
Apesar dessa referência que Lobato faz,
na verdade a essência da Emília lembra o Pinóquio,
um boneco que não aceita facilmente
as circunstâncias que a vida impõe, questiona,
reivindica os seus direitos, mas agrada
a todas as crianças do mundo.
... Pinóquio retrata o espírito de um povo e de
uma época, dentro de seu conteúdo universal.
Insinua a filosofia do livre-arbítrio. Pinóquio
‘é sempre um padrão de suas determinações’,
princípio do livre-arbítrio... (CARVALHO,
1989, p. 112).
Ao imaginar Pinóquio, Collodi evoca
idéias bíblicas do relacionamento pai e fi-lho, o abandono do lar pelo filho, o sofrimento
decorrente de tal ato e a volta ao lar,
pois segundo o ditado “o bom filho à casa
torna”, com o conseqüente perdão do pai e
o aprendizado que recebe ao mostrar-se um
bom menino, tornando-se humano.
É, realmente, uma obra de arte, em seu dualismo
filosófico: boneco de pau, filho humano;
no seu pluralismo despretensioso de
relações humanas; na realização de uma verdadeira
obra de ficção – Pinóquio é um tipo
literário universal (CARVALHO, 1989, p.
112).
O autor de Pinóquio, por sua vez, também
recorreu às fontes primárias das histórias de
tradição oral. Foi buscar seu boneco nos heróis
mitológicos da Grécia antiga, repletos de
significações, para justificar o destino do homem
e os rumos de sua vida.
Inspira-se na Mitologia grega para criar seu
boneco de pau: Jápeto era pai de Prometeu,
que criou o homem do limo da terra e
o animou para a ira de Júpiter. Geppetto era
pai de Pinóquio, e criou-o de um pedaço de
pau, para castigo de sua audaciosa pretensão
(CARVALHO, 1989, p. 112).
Em Reinações de Narizinho, Emília
“nasce” de forma discreta, não tinha proje-
ção. Era apenas uma boneca que começou a
falar e a fazer parte das histórias. O crescimento
da personagem foi notável e essa simpatia
de Lobato por ela transformou-a na boneca
mais conhecida do mundo.
Na opinião da pesquisadora Nelly Novaes
Coelho (1995, p. 854), “quanto à humanidade
de Emília, torna-se impossível detalhar
aqui a atuação da boneca Emília nas
várias situações em que ela se revela comoo protótipo-mirim do ‘super-homem’ nietzschiano,
com sua Vontade de Domínio e exacerbado
individualismo...”.
Alter-ego de Lobato, que diz: “literatura
é voz e Emília foi a minha voz. O meu arranco,
o meu espanto e será a minha despedida.
Dei meus gritos através dela me salvando
da loucura e de tantos aborrecimentos,
Emília sempre esteve comigo, filha amada e
zombeteira, minha boneca de pano contra as
burrices do mundo e contra a ‘estupidez humana’
”... (DANTAS, s.d., p. 115), representada
pela livre maneira de pensar e falar,
principalmente por se tratar de uma boneca,
tomou rumos que chegou a assustar o próprio
autor (s.d., p. 341), que confessou a Rangel,
em uma de sua cartas:
(A Emília) começou com uma feia boneca
de pano, dessas que nas quitandas do interior
custavam 200 réis. Mas rapidamente foi evoluindo
e adquirindo tanta independência que
(...) quando lhe perguntaram: ‘mas que você
é, afinal de contas, Emília?’ ela respondeu
de queixinho empinado: sou a Independência
ou Morte! E é tão independente que nem
eu, seu pai, consigo domá-la. (...) Emília que
hoje me governa, em vez de ser por mim governada”.
Nelly Novaes Coelho (1995, p. 854)
fala mais uma vez de Emília, como a fi-
gura marcante da produção literária infantil
de Lobato: “indiscutivelmente, ela é
a personagem-chave do universo lobatiano,
pois é a única que vive em tensão dialética
com os demais e também a única que sofre
transformações em sua personalidade”.
A simplicidade de uma boneca feita de retalho
de pano aliada à esperteza em falar tudo
o que vem à mente, fez de Emília, a “dadeira
de idéias”, a personagem mais conhecida de todo o universo lobatiano. E, como
prova disso, muitas opiniões se convergem
para enaltecer o papel dessa boneca, que ganhou
espaço nos livros e na televisão.
Conselheiro, Marquês de
Rabicó
O Quindim
Esses animais também “moram” no Sítio,
mas não fazem parte das personagens fixas,
atuantes em todas as aventuras. São exemplos
da literatura fantástica, pois eles falam,
pensam e demonstram seus sentimentos.
Para Whitaker Penteado (1997, p. 212), os
três formam “um trio, ilustrativo do sincretismo
criativo que Lobato estabelece entre os
três mundos da fantasia: pessoas, animais e
brinquedos”.
Um burro que fala, vindo do País das Fá-
bulas, o Conselheiro; um porco que tem a
irracionalidade do animal, representada pela
gula e um rinoceronte, que domina a língua
portuguesa, e tem um nome delicado, contrá-
rio à sua aparência, compõem o elenco das
personagens de sentido maravilhoso, ao lado
do Príncipe Escamado, um peixe, entre outros
que deram vida à obra de Lobato.
Fonte de pesquisahttp://www.bocc.ubi.pt/pag/marcolla-rosangela-monteiro-lobato-contador-de-historias.pdf
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